quarta-feira, 23 de março de 2011

HERÓI POR UM DIA
(depois de ouvir "Heroes", com Wallflowers. Música e letra do imenso David Bowie)


Corto a grama, periodicamente... Mas queria cortar cabeças hediondas pra te proteger dos perigos todos, te salvar de todos os abismos. Lavo a louça, quando ela se amontoa na pia. Mas queria lavar esse meu cotidiano, para que caminhasses de novo num chão limpinho e puro, e não por essas estradas da vida que se abrem sem mais nos conduzir ao desconhecido e ao maravilhoso, que nos engolem com seus buracos e nos afogam no abismo de mesmice de cada dia, dia após dia...
 
Batuco cotidianamente no meu teclado, que a vida é dura, e é preciso correr atrás da grana... Nos livros, vivo em meio a imagens de ossos fraturados, de cortes cirúrgicos, vísceras, fígados... E de fotografias impressionantes de cânceres e deformidades e outros malefícios, e de distúrbios que só existem, princesa, no imaginário dos especialistas e dos ultra-especialistas dessa medicina tão moderna e tão inútil, nos livros que traduzo, cotidianamente.

Ah, princesa, é só isso que faço... Mas queria mesmo é batucar noutros teclados. Com uma acha de lenha pesada e nodosa firmemente empunhada, queria avassalar teus pesadelos, e porrar firme tuas indecisões e matar de susto teus medos e terrores que não consigo ainda compreender... E deixar desanuviada tua cabecinha loura, com tanto espaço vazio, querida, mas tanto!, que eu, certamente, caberia todinho nela, e povoaria, herói sempre! tuas manhãzinhas enevoadas e o dia inteiro. E, nas noites enluaradas, provaria, safado e sorridente, dos teus prazeres... E quando a madrugadinha baixasse, e se, com sorte, estivesse chovendo tempestades coruscosas e raios fulgurantes, certamente tu acordarias assustada e me convocarias, chorosa, pra combater novamente por ti, para afastar esses novos terrores que chegam quando estamos sós, no meio da chuvarada.
 
Ah, moça complicada, criança exigente, mulher maluca, queria não ser o lamentável Homem Comum dos Nossos Dias, esse patético ser, amedrontado por cartões de crédito e contas bancárias, pelas dívidas idiotas que fazemos todos nós; conivente com a onipresente falta de ética e de pudor e de vergonha-na-cara que campeiam, mesmo entre aqueles que consideramos nossos “amigos”... Queria não temer, como um rato de esgoto, o simples ato de caminhar à noitinha pelas ruas da cidade...

Queria não depender de um empreguinho estúpido e tão pouco criativo. Queria não me trair. Queria não me perder – que há tanta coisa boa a fazer e a pensar! – nas bobagens triviais que consomem nossos dias: contas, despesas, a roupinha da moda, atritos babacas, rusgas idiotas, a necessidade de ostentar o que não somos, o eterno representar diante de outras pessoas, quase sempre tão idiotas como nós, tão perplexas como estamos... Não queria mostrar somente a pontinha do iceberg que sou eu. Queria me desenterrar para os amigos, conversar mais, rir mais...Queria me revelar todo, inteiro, e queria que todos se revelassem – quantidades completamente conhecidas que deveriam ser, ávidas de vida... Queria não ser esse cara tão previsível, que já não combate mais à sombra das inúmeras setas lançadas pela vida, como combatiam, com um sorriso largo de escárnio, os heróis guerreiros de outrora, à espera da morte honrosa... 
 
E como já combati, co’a tua imagem pregada junto a meu peito, tua fotografia de menina sorridente e feliz, balançando junto com meu coração ! Ah, princesa, como eu queria de novo ser
Herói apenas por mais um dia, pra que tu me percebesses novamente e, ao me enxergar, me olhasses no fundo, como olhavas antigamente. E visses em mim não essa casca velha que agora apresento, essa ruína, esse cara sem fé, mas um espelho que refletia, milímetro a milímetro, segundo após segundo, tua própria insolência e fome de vida... Que teus olhos reconhecessem, ainda uma vez ! o guerreiro corajoso e bravo que sempre te conduzia, há milhões de anos atrás, pro universo recôndito e misterioso dele, pro seu mundo repleto de flores cheirosas, de mágicos e de fadas, de deuses e diabos, anjos e unicórnios e íncubos... Que descobrisses novamente, maravilhada e contente, faminta mas saciada, teu antigo celacanto, vigoroso e voraz, amante e maior amigo, teu antigo peixe-cavaleiro pra todas as horas dessa nossa vida... Teu herói para todo o sempre.

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